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PARA GOSTAR DE LER, É SÓ COMEÇAR / MARIA MORTATTI

Quem nunca? Ao menos entre os que frequentaram escola a partir dos anos 1970, quem nunca leu um, alguns ou todos os volumes da coleção Para Gostar de Ler e se encantou com a descoberta ou releitura de tantos grandes escritores brasileiros? Essa coleção, lançada pela editora Ática em 1977 e encerrada em 2013, era destinada aos anos finais do ensino de 1o. grau e ensino de 2o. grau, e nela foram publicados crônicas, contos, poemas. Com as séries Bom Livro – de clássicos da literatura brasileira e portuguesa – e Vaga-Lume – livros de literatura para jovens –, a coleção Para Gostar de Ler compôs exitosa estratégia editorial da Ática, originada da impressão em mimeógrafo de apostilas didáticas para o Curso de Madureza Santa Inês, da cidade de São Paulo. Sob a direção do editor e professor Jiro Takahashi (22.11.1947 –  ), que se tornou uma “lenda” no mercado editorial, essas iniciativas arrojadas e pioneiras contribuíram para consolidação das expressões “paradidático” e “leitura extraclasse”, em referência ao produto editorial e o correspondente modo e espaço escolar de circulação de textos literários. Contribuíram, ainda, para a divulgação da produção literária brasileira e para programas de incentivo à leitura e à formação de leitores, no contexto das políticas educacionais e culturais decorrentes das mudanças estabelecidas pela lei n. 5.692/1971, que tornou obrigatório o ensino de oito anos.

Como conta Jiro Takahashi em entrevistas já antológicas, a história da coleção Para Gostar de Ler começou em 1976, com uma conversa telefônica entre ele e o poeta, escritor e professor Affonso Romano de Sant’Anna, que mencionou um comentário do escritor Rubem Braga sobre o fato de suas crônicas estarem presentes em livros didáticos, serem lidas por estudantes, mas seus livros venderem pouco. Tentando entender o motivo, “começamos a pensar em reunir as crônicas mais lidas pelos estudantes em livros concebidos para que eles gostassem de ler. Além da qualidade dos autores, um ponto que foi fundamental, a meu ver, para a grande aceitação da coleção foram as leituras experimentais que fizemos com três mil estudantes. Para cada volume, editávamos uma edição experimental com o dobro de crônicas que fariam parte do volume, e os estudantes escolhiam as que davam mais prazer em ler. Foi uma coleção feita em colaboração com o público a que se destinava. Isso pode explicar a sua grande aceitação.” Os professores de 1o. e 2o. graus recebiam exemplares gratuitos – ainda tenho os meus – e cada volume era acompanhado de um suplemento de trabalho, informações sobre a coleção e sua finalidade – “levar o aluno a incorporar o gosto e o hábito de ler” –, comentários e questões abertas sobre assuntos dos textos, sugestões didáticas e resumos biográficos dos autores. Na carta-apresentação do volume 1, dirigida ao “amigo estudante” e assinada pelos quatro cronistas que inauguram a coleção – Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Rubem Braga –, reitera-se a finalidade de não “ensinar coisa alguma a você. Nem gramática nem redação nem qualquer matéria incluída no programa de sua série.” A tiragem desse volume foi de 100 mil exemplares, seguidos de reimpressão de mais 150 mil.

Entre 1977 e 2013, foram publicados 47 volumes, com inclusão de outros gêneros, subgêneros e assuntos e com atualizações nos projetos gráficos. Nos cinco volumes iniciais, permaneceram os mesmos cronistas. No volume 6, foram publicados poemas de José Paulo Paes, Henriqueta Lisboa, Mario Quintana e Vinícius de Moraes. Seguiram-se volumes de crônicas e contos, com outros grandes escritores brasileiros e universais. Para se ter uma ideia da importância e alcance do projeto, constavam autores, tais como: Luís Fernando Veríssimo, Clarice Lispector, Graciliano Ramos, Ignácio de Loyola Brandão, Lygia Fagundes Telles, Mario de Andrade, Marcos Rey, Machado de Assis, Affonso Romano de Sant’Anna, Rachel de Queiroz, Murilo Rubião, Marina Colasanti, Domingos Pellegrini, Dalton Trevisan, Moacyr Scliar, Ferreira Gullar, Cacaso, Paulo Leminski, Stanislaw Ponte Preta, Millôr Fernandes, Mark Twain, Edgar Allan Poe, Franz Kafka, Miguel de Cervantes, Conan Doyle, William Shakespeare, Voltaire. É ainda nessa coleção, no volume 5, que está publicado o também antológico ensaio-prefácio “A vida ao rés-do-chão”, do crítico e professor Antonio Candido, com um estudo analítico sobre o gênero crônica. A coleção era um "luxo", como comentávamos entre professores.

Enquanto escrevia este texto, lembrei-me das tantas vezes em que, no início das aulas e por pura diversão, lia para meus alunos crônicas, poemas e contos dos livros que eu recebia da editora. De um dos mais hilariantes momentos, lembrei-me agora: a leitura da crônica “Emergência”, de Luís Fernando Veríssimo, sobre o medo de avião de um passageiro de primeira viagem. Tantas vezes a li, tantas vezes choramos de tanto rir. Eu, com o livro aberto de frente para os alunos. esforçando-me para não interromper a leitura com repetidos engasgos nos risos lacrimejantes e mal disfarçados; eles, ouvindo curiosos e também tentando esconder o riso. Ao final, todos libertando as gargalhadas, aplaudíamos o também antológico pouso-desfecho de Veríssimo: “– Senhores passageiros, aqui fala o comandante Araújo. Neste momento, à nossa direita, podemos ver a cidade de... [O passageiro] pula outra vez da cadeira e grita para a cabina do piloto: – Olha para a frente, Araújo! Olha para a frente!”. 

Para Gostar de Ler representou irrecusável convite: conhecer autores e textos aos quais a maioria dos estudantes e provavelmente também dos professores tiveram acesso pela primeira vez. De forma direta ou indireta, os textos e os autores se tornaram conhecidos por leitores de primeira viagem ou veteranos e continuam vivos em sua memória e na história da educação e da cultura brasileiras. Formar leitores, dentro e fora da escola, continua sendo emergência nacional. Mas essa coleção cumpriu sua finalidade e deixa uma antológica lição: para gostar de ler, é só começar. E com textos de qualidade, que sejam acessíveis e enredem o leitor. Quem nunca leu ou desejou ler livros como esses? 

Maria Mortatti – 12.11.2023

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O SOFÁ DO NADA DO POETA MANOEL DE BARROS / JOÃO SCORTECCI

Tudo ou nada, na direção de Manoel de Barros, o poeta. Quero o nada e depois o tudo, sentar-me, indolente, e lá permanecer, por séculos. Isso basta, o bastante. Manoel de Barros (1916 – 2014) nasceu em Cuiabá, estado do Mato Grosso, e aos 13 anos de idade se mudou para Campo Grande, hoje Mato Grosso do Sul. Lá, ficou – quase – sempre. Escreveu o “Livro sobre nada”, de 1996, obra que eu gostaria de ter escrito. Belíssima! Falar sobre o nada, sempre me ocupou profundamente. Gosto da ternura do nada, inexistente, selvagem e mortal. No nada não há dor e nem medo. Somente solidão! No meu livro de poemas “Água e sal – Fragmentos de tempo algum”, de 1990, prefaciado pelo mineiro Fábio Lucas, poetei alguns poucos versos sobre o nada. Ficou, na época, a promessa de, um dia, cutucar novamente o assunto e, então, talvez, escrever. Ficou. Tenho até um provável título: “Nada de alguém”, quase isso. Manoel de Barros é absoluto. Escreveu: “Uso a palavra para compor meus silêncios.” "O nada do meu livro é nada mesmo.". Não o conheci pessoalmente. Uma pena! Trocamos assobios, passarinhos, bilhetes e livros. Nunca tempestades! Mais um dos descuidos literários, de tantos, em 50 anos. Perdi – não me conformo – os passarinhos de Quintana, a vida Severina, de João Cabral, e o “Poema sujo”, de Ferreira Gullar. Não adianta me justificar por nada – eu os perdi, e pronto. Os poetas são malvados: gostam de travessuras, piruetas e castigos. São serpentes! Morrem do nada – alguns, várias vezes –, não vão embora, não se despedem, nunca. Ficam nos azucrinando, nos marcando com palavras, bocas e cheiros. Os poetas são grudentos! Drummond – o anjo torto do céu – recusou o epíteto de “maior poeta vivo do Brasil”, em favor de Manoel de Barros. Grande Drummond! Manoel de Barros morreu no nada, aos 97 anos de idade, lendo, provavelmente “Poemas concebidos sem pecado”. Fica aqui – registrado – o meu desafio: quando publicar o livro “Nada de alguém”, será em sua homenagem, com dedicatória e nada. Na agenda, visitar Manoel de Barros, sentar-me, então, ao seu lado, no seu sofá de bronze. Manoel, licença! Posso? Eu venho de longe, do nada, estou atrasado. Perdoe-me.

João Scortecci

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PÉ DE CEBOLINHA VERDE E UM LUGAR PARA TODAS AS COISAS / JOÃO SCORTECCI

Nos anos 1960 – menino de tudo – resolvi plantar um maço de cebolinha verde no quintal de casa. “Planta que nasce novamente!” Foi o que me disseram. Curioso que sou, obedeci. Peguei uma enxada e comecei a cavar e a revirar a terra. Na verdade, cavei um buraco, dos grandes. Papai Luiz – que apareceu do nada – perguntou-me: “O que você está fazendo?”. “Uma horta!”, respondi. “E esse buraco?” Não respondi. Continuei cavando e jogando a terra no monte, ao lado. Ele se acocorou e – pacientemente – esperou por mim, até eu respirar e ouvir. “Filho, duas coisas são importantes na vida. A primeira é de ordem prática, para todas as coisas que você for fazer. Escolha o propósito, execute a tarefa e, depois, conclua com êxito”. Interessante, pensei. “E a segunda?” “A segunda é de ordem moral: antes de tirar algo do seu lugar, certifique-se, primeiro, onde irá colocá-la!”. Papai Luiz se levantou e, em silêncio, partiu. Eu, reflexivo, com a enxada, devolvi toda a terra de volta para o buraco. Plantei o maço de cebolinha verde, molhei a terra e a entreguei ao deus Sol, na sorte das minhas lembranças. Pesquisando sobre algoritmos, encontrei a biografia do matemático, astrônomo, astrólogo, geógrafo e escritor persa Alcuarismi (Abu Abdalá Maomé ibne Muça ibne Alcuarismi, 780 – 850), erudito na Casa da Sabedoria (ou Casa do Saber), biblioteca e centro de traduções estabelecido à época do Califado Abássida, em Bagdá, no Iraque. No seu livro “Da Restauração e do Balanceamento”, Alcuarismi apresentou a primeira solução sistemática das equações lineares e quadráticas. É considerado o fundador da Álgebra – junto ao matemático grego Diofante, de Alexandria. O radical das palavras “algarismo” e “algoritmo” vem de “algoritmi”, a forma latina do nome do erudito persa. Além do vocábulo português “algarismo”, seu nome deu origem ao espanhol “guarismo”, que, ao passar para o francês, tornou-se “logarithme” e deu origem ao termo moderno “algoritmo”. O conceito de "catálogo de biblioteca" foi introduzido nessa e em outras bibliotecas islâmicas medievais, nas quais os livros se organizavam por gêneros e categorias específicas. A incógnita nas equações algébricas era denominada pelos matemáticos muçulmanos como “xay” (“coisa”), notadamente na álgebra de Ômar Khayyam, que, ao ser transcrita “xay” pelos espanhóis, deu origem ao “X” da álgebra moderna. A Casa do Saber foi destruída durante o cerco de Bagdá, em 1258, pelos mongóis. Antes do cerco, no entanto, perto de 400 mil manuscritos foram resgatados pelo polímata persa Tuci (Naceradim de Tus, 1201 – 1274) e levados para Maragha, no Irã. Em tempo: “Pai, quem disse isso?” “Um matemático russo!”, foi o que ele respondeu, na época. Quando quis saber mais, papai Luiz já estava com demência avançada e liberto do lugar de todas as coisas.

João Scortecci


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MARIE SKLODOWSKA CURIE: UMA IRRADIANTE MULHER / MARIA MORTATTI

A cientista polonesa, naturalizada francesa, Maria Sklodowska/Marie Sklodowska Curie (07.11.1867 – 04.07.1934) foi pioneira e exemplar nas muitas atividades que realizou em uma sociedade sexista e xenófoba. Ela e o marido, o físico francês Pierre Curie (15.05.1859 – 19.04.1906), descobriram os elementos químicos Rádio e Polônio – este assim denominado em homenagem à terra natal da cientista – e foi a primeira mulher laureada com o Prêmio Nobel, por duas vezes: o de Física, em 1903, compartilhado com o Pierre e Henri Becquerel; e o de Física, em 1911. Foi também a primeira mulher a se formar em Ciências na Universidade Sorbonne, na França; a primeira a obter o título de doutorado – com a tese defendida em 1903, em que descrevia detalhadamente seus esforços para compreender a origem da radioatividade; a primeira professora catedrática naquela universidade francesa; e a primeira mulher a ser sepultada por seus próprios méritos no Panteão de Homens Ilustres de Paris.

Filha de professor-cientista e de professora-diretora de escola, após ter considerado se dedicar à literatura, decidiu-se pelos estudos em física e química, motivo de sua partida para a França, uma vez que na Polônia, sob domínio russo na época, mulheres não podiam frequentar universidades. Destacou-se, ainda, pela dedicação à educação científica. Na França, além de professora na Sorbonne, lecionou em escola secundária e inovou no ensino de Física, por meio de perspectiva experimental, buscando despertar vocações científicas em crianças e mulheres. Em 1985, casou-se com Pierre Curie, por quem se apaixonou quando foi a ele apresentada por um cientista polonês em Paris. Casaram-se no civil, em cerimônia simples, ela vestida de azul-marinho, como o avental que usava no laboratório, e seguiram de bicicleta em viagem de lua de mel. Sobre Pierre, Marie escreveu: “ele dedicou sua vida ao sonho da ciência: ele sentia precisar de uma companheira que pudesse viver esse sonho com ele”. Tiveram duas filhas: Irène e Eve. Pierre morreu ao ser atropelado por uma charrete, quando atravessava a rua, num dia chuvoso. Depois da tragédia, Marie entrou em depressão, afastando-se temporariamente do laboratório onde trabalhavam juntos. No seu diário íntimo, iniciado dias depois do falecimento do marido e finalizado no ano seguinte, revela-se a faceta apaixonada da mulher que aparentava dureza, sem sorrisos nas poucas fotos disponíveis, possivelmente para enfrentar as proibições impostas às que ousavam lutar para conquistar seu lugar na sociedade, conforme o mérito de seus talentos. Durante a Primeira Guerra Mundial, prestou grandes serviços aos soldados, com suas ambulâncias radiológicas, conhecidas como "Petit curies". Com a filha Irène Joliot-Curie, que se tornou cientista e se casou com o também cientista Jean Joliot-Curie, Marie esteve no Brasil, em 1926, fazendo conferências e divulgando o uso da radiação no tratamento do câncer no Instituto do Radium de Belo Horizonte e na Escola Politécnica do Rio de Janeiro. Ela morreu em decorrência de anemia aplástica, com 66 anos de idade, causada provavelmente pela exposição sem proteção, durante décadas, a material radioativo com que trabalhava em suas pesquisas, numa época em que não suspeitava dos efeitos nocivos da radioatividade no organismo nem de uma das consequências diretas de sua descoberta, a energia nuclear e a bomba atômica. Foi enterrada ao lado do marido no cemitério de Sceaux e, em 1995, os restos mortais foram transferidos para o Panteão de Paris.

Uma das mais extraordinárias figuras da Física e da Química modernas, Marie Curie influenciou gerações de físcos e químicos, tendo deixado um legado científico fundamental e importantes documentos para a história da ciência. Além da tese, de cadernos de laboratório, de relatórios semanais na revista Comptes Rendus, da Academia Francesa de Ciências, de publicação de artigos em coautoria com o marido, relatando resultados das pesquisas, e dos diários, Marie publicou, em 1919, o livro Radiologia na guerra, com sua experiência como membro de comitês dedicados à causa polonesa, em 1923, a biografia de Pierre Curie, seguida de anotações de sua autobiografia, e escreveu o livro, Radioatividade, publicado em 1935 (póstumo). Todo o material que ela tocou, porém, permanece cuidadosamente guardado nos porões da Biblioteca Nacional da França, em caixas especiais com várias camadas de chumbo, por se tratar de material altamente radioativo. Também para evitar contaminação, o corpo de Marie foi enterrado em um sarcófago de chumbo com mais de 2 cm de espessura. Segundo os cientistas, deverão permanecer intocáveis por 1.500 anos, tempo necessário para a desintegração dos átomos de rádio. 

Conhecida mundialmente, foi homenageada com inúmeras honrarias e biografias, uma delas de autoria da filha Éve, em 1938, além de cinebiografias, como Radioactive, de 2019, direção de Mariane Satrapi, baseado no livro RadioactiveMarie & Pierre Curie: A tale of love and fallout, de Lauren Redniss. Madame Curie foi figura marcante para minha formação. Quando eu cursava o último ano do curso colegial, em 1970, e tive de decidir sobre a carreira a seguir, duas áreas me interessavam: Química – porque gostava da matéria e da professora, D. Terezinha Cury, que me apresentou Madame Curie; e Letras – porque gostava muito de ler literatura. Na dúvida, fiz a inscrição para exame vestibular na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Araraquara, onde há os dois cursos. Aprovada, acabei optando por Letras, mas continuo gostando de Química e Física e admirando essa irradiante mulher que contribuiu para iluminar novas descobertas e tornar o mundo um lugar melhor para todos. E com quem aprendi que "Nada na vida deve ser temido; apenas deve ser compreendido" e "(...) a ciência tem uma grande beleza. Um cientista em seu laboratório não é apenas um técnico: é também uma criança colocada diante de fenômenos naturais que o impressionam como um conto de fadas”.

Maria Mortatti – 07.11.2023


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BEIJOS ROUBADOS DE CORA CORALINA E RACHEL DE QUEIROZ / JOÃO SCORTECCI

O dia em que tudo aconteceu. O beijo roubado de Anna Lins! Não foi lá nos Becos de Goiás e nem nas águas do Rio Vermelho. Foi quando Anna Lins dos Guimarães Peixoto Bretas perdeu o medo e virou Cora Coralina. Foi no ano de 1983, na sede da União Brasileira dos Escritores – UBE, quando da entrega do Prêmio Intelectual do Ano – Troféu Juca Pato. Eu, pequenino; e ela, gigante! Curvei-me quase meio metro, para que ela pudesse me roubar um beijo de poeta. Poucas mulheres receberam o Troféu Juca Pato, outorgado pela entidade de escritores. Foi Cora Coralina – dos becos de Goiás – quem puxou a fila literária. Depois, vieram Lygia Fagundes Telles, Rachel de Queiróz, Renata Pallottini e Tatiana Belinky. Coube à escritora luso-brasileira Dalila Teles Veras lançar – contra tudo e todos – a candidatura da poeta goiana e, a duras penas, conseguir as 30 assinaturas obrigatórias, na época, para disputar o pleito. Foi um momento de ruptura importante na UBE, que fez história. Cometi o mesmo beijo – também roubado – no ano de 1992, na Rachel de Queiroz, conterrânea e amiga da Família Paula. Como meu avô paterno, João Batista de Paula, o Batista da Light, a escritora nasceu na cidade de Quixadá, no Ceará, e foi amiga de uma vida inteira. Quando soube meu nome, perguntou: “Você é neto do Batista da Light?” “Sou.” “O Batista era muito querido, estava sempre alegre e sorrindo", sentenciou ela. Rachel de Queiroz estava sentada – confortavelmente – numa poltrona na sala da diretoria da UBE, aguardando o início da cerimônia de entrega do Juca Pato. Curvei-me e a beijei, com todo o amor do mundo. Foi o nosso último e derradeiro encontro. Logo depois, Rachel adoeceu e faleceu, em 4 de novembro de 2003, na cidade do Rio de Janeiro. Beijos roubados são sempre assim: perigosos, eternos e inesquecíveis.

João Scortecci


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O MITO DE PIGMALEÃO, AFRODITE E GALATHEA / JOÃO SCORTECCI

Pigmaleão, na mitologia grega, foi um rei da ilha de Chipre, localizada na Bacia do Levante, no Mar Mediterrâneo. Segundo o poeta romano Ovídio (Publius Ovidius Naso, 43 a.C. – 17 ou 18 d.C.), em sua obra Metamorfoses, Pigmaleão – que também era escultor –apaixonou-se por uma estátua que esculpira em marfim, ao tentar reproduzir a mulher ideal. Ele havia decidido viver em celibato, por não concordar com a atitude libertina das mulheres de Chipre, conhecidas como “cortesãs”. A deusa Afrodite – figura do amor, da sedução e da sexualidade –, apiedando-se de Pigmaleão e não encontrando em toda a ilha uma mulher que, em beleza e pudor, chegasse aos pés da que esculpira, transformou a estátua numa mulher de carne e osso, de nome Galathea, com quem Pigmaleão se casou e teve uma filha chamada Paphos, que deu nome a uma cidade portuária na costa sudoeste da ilha. Habitada desde o período neolítico, Paphos tem vários locais relacionados com o culto da deusa Afrodite, por ser o local mítico do seu nascimento. O Mito de Pigmaleão traduz um elemento do comportamento humano: a capacidade de determinar seus próprios rumos, concretizando planos e previsões particulares ou coletivas. Os mitos nos ajudam a entender as relações humanas e guardam em si a chave para o entendimento do mundo. Uma versão moderna da lenda é a peça teatral Pigmaleão (1916) – com posteriores adaptações teatrais e cinematográficas – escrita pelo dramaturgo, romancista e jornalista irlandês George Bernard Shaw (1856 – 1950). Na peça, em vez de uma estátua transformada em mulher, temos uma mulher do povo transformada em mulher da alta sociedade. Shaw, socialista ardente, escreveu muitos folhetos e discursos para o Socialismo Fabiano – doutrina criada em Londres, em 1883, pela Sociedade Fabiana, que esse dramaturgo integrou – que defendia gradual evolução para o socialismo, por meio de reformas sociais, diferenciando-se dos marxistas, que pregavam uma passagem revolucionária. Afrodite, responsável pela perpetuação da vida, do prazer e da alegria, sabe o que faz. É quando você – em metamorfose – torna-se aquilo que pensa ser, condoendo-se de compaixão, tragédia e amor.

João Scortecci

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CONSELHOS DE BOILEAU SOBRE A ARTE DE ESCREVER / JOÃO SCORTECCI

O poeta e tradutor francês Boileau (Nicolas Boileau-Despréaux, 1636 – 1711), autor da obra “Discurso sobre a sátira” (1666), em que zomba do clero e da aristocracia, pinta quadros divertidos e parodia escritores, é considerado um polemista – aquele que trava polêmicas – e um teórico da literatura francesa. Escrevia, principalmente, para a aristocracia, dentro da tradição de Aristóteles e Horácio. Em 1674, publicou “A arte poética” (“L’Art poétique”), poema didático de 1.100 alexandrinos clássicos, dividido em quatro canções – obra que influenciou toda uma geração de escritores. Em 1677, foi nomeado, juntamente do poeta dramaturgo e matemático Racine (Jean Baptiste Racine, 1639 – 1699), historiógrafo do rei Luís XIV, e, em 1684, entrou para a Academia Francesa. Em 1687, publicou “Reflexões sobre Longino”, popularmente conhecido como “São Longuinho”, santo da Igreja Católica. Boileau foi venerado como grande poeta e inspirador de Racine e de Molière (Jean-Baptiste Poquelin, 1622 – 1673), ator e dramaturgo francês, considerado um dos mestres da comédia satírica. Boileau, nos versos iniciais do Canto I de “A arte poética”, afirma a necessidade de um talento inato, sem o qual a escrita poética lhe parece impossível. No entanto, ele sustenta a partir daí que esse talento natural não pode ser suficiente por si só, que ele deve se submeter às regras da poesia e, portanto, ao rigoroso aprendizado dessa arte. A perfeição só pode ser alcançada quando o gênio e o respeito pelas regras são combinados. Escreveu: “Há certos espíritos cujos sombrios pensamentos, são como nuvem espessa; sempre emaranhados. O dia da razão não saberia atravessá-la. Antes, pois, de escrever, aprendam a pensar (...) E sem perder coragem, vinte vezes empreendam a vossa obra: limpem-na sem cessar e tornem a limpá-la, acrescentem algumas vezes, mas outras eliminem.” Em dois dos versos mais famosos de “A arte poética", afirma: “O que concebemos bem é declarado claramente/E as palavras para dizê-lo chegam facilmente.”

João Scortecci


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NOS BRAÇOS DE DRUMMOND, EM ESTADO DE POESIA / MARIA MORTATTI

Dizem que a poesia salva e a memória falha. Mas há dias em que a poesia – insensível – me falha e o que me salva é a memória da poesia que me salvou naqueles dias e deles ficou como única prova – tangível – de sua existência. E há outros – tão sentimentais – em que até as escamas da sopa esfriando no prato são encobertas pelo cartaz amarelo na consciência: “neste país é proibido sonhar”. Assim aprendi com Carlos Drummond de Andrade (31.10.1902 – 17.08.1987), quando o vi pela primeira vez e nele toquei na estante da Biblioteca Pública Municipal "Mário de Andrade" de Araraquara. Desde então, quando, enclausurada nos sombrios enigmas da quadrilha, procuro a palavra que falta num verso que inunda minha vida inteira, mas a pena não quer escrever, lembro-me de nossos primeiros encontros delicadamente registrados no caderninho – secreto – da menina de 17 anos. Foi assim que, tempos atrás, por alguma magia na noite cega – consegui penetrar surdamente por uma fresta no reino das palavras. Lá reencontrei em estado de dicionário cada letra da palavra que nomeia a falta e a esperança, perdi-me entre os infinitos poemas que estão por ser escritos, até que, vencida pela fadiga das retinas, repousei a cabeça sobre a pedra e adormeci no caminho. Outubro chegava ao fim, quando me despertou um anjo torto com outro cartaz amarelo: neste país não é proibido sonhar. Levantei-me apressada. Era aniversário do poeta: 121 anos! Quase tropecei nas palavras, ainda impregnadas de sono. De mãos dadas, seguimos o dia. Sobre o tapete ou duro piso, compusemos com urgência a úmida trama. Um caso pluvioso! Para repousar, fomos à cama. Onde cabe todo o sentimento do mundo e o amor – ah, o amor! –, esse privilégio dos maduros, que começa tarde e se aprende depois de arquivar toda a ciência. A lua e o conhaque nos botaram comovidos como o diabo. Aconchegada em seus braços, em puro estado de poesia, sonhei que cantávamos o medo, respirando papel na noite do quarto. Acordei sozinha no escuro. Por que me abandonaste? E agora, José? Sem rima, a solução: chegara o tempo em que a vida é uma ordem. É preciso terminar o texto. Mesmo sabendo que tenho apenas duas mãos e meus ombros mal conseguem suportar o mundo, ainda que mal me exprima. Se procurar bem, acabo encontrando, não a explicação (duvidosa) da partida inesperada – Por quê? Por quê? Por quê? –, mas a poesia (inexplicável) dos tempos felizes. Mesmo sabendo que amar um passarinho é coisa louca e o canto é sua essência, se não há falta na ausência, se de tudo fica um pouco, por que não ficaria muito de nós em nós? Se amar se aprende amando e, tal uma lâmina, atravessamo-nos, fecundamo-nos e renascemos em cada novo cio, compondo em sete mil cantos as sete mil faces do amor, depois que as coisas tangíveis se tornaram insensíveis à palma da mão, ficamos nós em nós. Em estado de poesia nos habitamos: “Além do amor, não há nada,/amar é o sumo da vida.//São mitos do calendário/tanto o ontem como o agora/e o teu aniversário/é um nascer toda hora.//E nosso amor, que brotou/ do tempo, não tem idade/ pois só quem ama escutou/o apelo da eternidade.”

Maria Mortatti – 31.10.2023 (Dia de Drummond - Dia Nacional da Poesia)

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Obs.: Cito, sem aspas e com licença poética, versos de vários poemas de Drummond.


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CLICHÊS OU A INACABÁVEL ENCICLOPÉDIA DA ESTUPIDEZ HUMANA / MARIA MORTATTI

Do clichê tipográfico – palavra de origem francesa designando chapa matriz de impressão tipográfica que pode ser reproduzida indefinidamente – decorre a acepção de clichê, na linguagem oral e escrita, como chavão, lugar comum, frases ou ideias não originais, que se trivializam pela repetição de forma automática e abusiva. Podem se tornar eficientes para a comunicação em alguns contextos, como na publicidade, em máximas e provérbios, ou vazias de sentido, como na linguagem literária, quando, ressalvando-se o uso em paródias ou pastiches, soluções estilísticas originais de um grande escritor são repetidas por seus epígonos, também de forma automática e abusiva, por modismo ou admiração, muitas vezes sem saberem de sua origem e contexto. Nestes tempos de robôs treinados para copiar/plagiar textos disponíveis on-line, os clichês literários, além de abundantes, vêm se tornando cada vez mais naturalizados.

Reflexões sobre o assunto não são novas e nem sempre tiveram sentido pejorativo. Desde a Antiguidade clássica – quando os “topoi” (tópicos) eram a matéria dos argumentos e os lugares-comuns dos oradores em seus discursos – até o século XVIII, fórmulas estereotipadas de pensar e de dizer, imitando os clássicos – que deviam ser repetidas, inclusive constando de manuais escolares de composição – passaram depois a ser consideradas clichês. O jornalista e filólogo brasileiro João Ribeiro (1860 – 1934) publicou em 1908 seu estudo Frases feitas – Estudo conjetural de locuções, ditados e provérbios. O escritor francês Gustave Flaubert (1821 – 1880) dedicou muitos anos de sua vida a combater seu grande inimigo, a estupidez humana. Coletou clichês da sociedade francesa de sua época e os reuniu no inacabado Le dictionnaire des idées reçues ou Catalogue des opinions chic (Dicionário de ideias feitas ou Catálogo de ideias chiques) – que teria como título ou subtítulo “Enciclopédia da estupidez humana” – , publicado postumamente em 1911, como apêndice a outra obra inacabada, Bouvard et Pécuchet (1881) – e, em 1913, por Louis Conard, Libraire-Éditeur. A edição corrigida e ampliada do dicionário, com novos verbetes descobertos entre as anotações de Flaubert, foi lançada na França em 1950. No Brasil, foi traduzido pelo escritor, jornalista e editor Fernando Sabino (1923 – 2004) no livro Lugares-comuns, de 1952, dedicado ao escritor Hélio Pellegrino (1924 – 1988) e publicado na coleção Os Cadernos de Cultura, do Ministério da Educação e Saúde, editado pelo Departamento de Imprensa Nacional. Posteriormente, passou a ser editado pela Record, com acréscimo de um subtítulo irreverente: "As bobagens que a gente diz: eu, você e Flaubert". A tradução é precedida por um ensaio e informações sobre o dicionário. No ensaio, Sabino problematiza conceitos e funções históricas do lugar comum, concluindo: “Escrever bem não é repetir o que já foi bem escrito: é revalorizar os meios de expressão, juntar ou separar palavras para fazê-las reagir, servir-se do que já foi dito para dizer pela primeira vez. É preciso reabilitar as ideias cuja expressão a frase feita consumiu. Ter a coragem de surpreender como a um inimigo o lugar-comum e violentá-lo, libertando a verdade que possa encerrar. Usar esta verdade na descoberta de outras que um dia venham a ser lugar-comum.”

Sem dúvida, esses conselhos – que nada têm de "bobagens" – são realizados na obra de Sabino e de tantos grandes escritores que conseguem surpreender o lugar comum, violentá-lo e libertar suas verdades, dizendo-as pela primeira vez. Essa é também uma diuturna luta minha – possivelmente nem sempre bem-sucedida – e deveria ser a luta de todo escritor. Quantos epígonos, porém – especialmente nestes tempos de tanto conteúdo acessível on-line –, reproduzem enésimas vezes em suas chiclerias tantos lugares comuns, como “verdades acacianas”, mesmo que não tenham lido O primo Basílio, de Eça de Queirós”, nem tomado conhecimento do caricato Conselheiro Acácio, personagem metido a intelectual que agradava a todos com suas frases e citações proferidas em tom grave, sentencioso, pomposo, solene, mas vazias de sentido e repetidas indefinidamente, como amontoado de obviedades e chavões – à semelhança de chaves mestras usadas para abrir todo tipo de fechaduras e que também possibilitam furtos. Assim os clichês, como chiclé mascado – em anagrama mal disfarçado de chique –, vão grudando na língua de escritores desavisados e mal informados, que, acreditando serem os primeiros a dizer, violentam os ouvidos de leitores, contribuindo, muitas vezes de modo involuntário, para uma inacabável enciclopédia da estupidez... ou da ingenuidade humana, hoje ampliadas pelas artimanhas de robôs treinados para reproduzi-las indefinidamente.

Maria Mortatti – 30.10.2023


 

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JOSÉ OLYMPIO, CASA GARRAUX E A SEMANA DE ARTE MODESTA EM BATATAIS/SP NO ANO DE 1987 / JOÃO SCORTECCI

A José Olympio Editora foi fundada em 1931 pelo editor e livreiro batataense José Olympio (José Olympio Pereira Filho, 1902 – 1990), na cidade de São Paulo. Em 1918, com 16 anos de idade, José Olympio deixou Batatais – região metropolitana de Ribeirão Preto – e se mudou para a capital paulista, com o objetivo de estudar Direito. Conseguiu um emprego na Papelaria, Livraria e Typographia Casa Garraux (A. L. Garraux & C.), então de propriedade de Charles Hildebrand. Trabalhou na seção de livros, e o serviço consistia em abrir caixas de livros e limpar a poeira das estantes. Depois passou a ajudante de balconista, época em que tomou gosto pelos livros. A Casa Garraux era frequentada por políticos e escritores, como Menotti Del Picchia, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Plínio Salgado e Cassiano Ricardo. Em 1926, com a morte de Charles Hildebrand, José Olympio assumiu o cargo de gerente da seção de livros. No final da década de 1920, José Olympio começou a se interessar por livros raros e se tornou um respeitado entendido no assunto. Com a morte do advogado e jornalista, Alfredo Pujol (Alfredo Gustavo Pujol, 1865 – 1930), colecionador de livros raros, Olympio fez uma oferta para a família e comprou todo o acervo desse colecionador. Foi o início do seu legado. Adquiriu – depois – vários outros acervos, para, em 1931, aos 28 anos de idade, fundar a Casa José Olympio Livraria e Editora, na Rua da Quitanda, 19 A, na capital paulista. Em 1934, a livraria se mudou para a cidade do Rio de Janeiro, então centro intelectual do Brasil. Em 1935, Olympio se casou com a professora e escritora Vera Pacheco Jordão, com quem teve dois filhos, Vera Maria Teixeira e Geraldo Jordão Pereira (1938 – 2008), fundador da editora Sextante (1998), junto de seus filhos Marcos da Veiga Pereira e Tomás da Veiga Pereira. Nas décadas de 1940 e 1950, a José Olympio se tornou a maior editora brasileira. Publicou perto de 2 mil títulos, com 5 mil edições, sendo 900 autores nacionais e aproximadamente 500 autores estrangeiros. Em 1987, visitei Batatais – cidade natal de José Olympio –, durante a Semana de Arte Modesta, encontro comemorativo dos 65 anos da Semana de Arte Moderna de 1922. O evento em Batatais foi “grandioso” e registrou a presença de centenas de escritores de todo os cantos do Brasil. Fomos e voltamos de ônibus alugado pela Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo. Do meu lado – eu, na janela do ônibus, e ele, no corredor do meio –, o escritor e editor Pereira (Antonio Olavo Pereira, 1913 – 1993), irmão caçula de José Olympio. A viagem de 350 km, de São Paulo até Batatais, durou quase 6 horas. Dos atrasos e das demoras, uma única certeza: torcendo para não chegar nunca! Conhecê-lo foi um “presente dos deuses”. Na época, a Scortecci Editora tinha pouco mais de cinco anos de idade. Em 2001, a José Olympio Editora foi comprada pelo Grupo Editorial Record.

João Scortecci



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GRACILIANO RAMOS: ARTE É ISSO / MARIA MORTATTI

“Só conseguimos deitar no papel os nossos sentimentos, a nossa vida. Arte é sangue, é carne. Além disso não há nada. As nossas personagens são pedaços de nós mesmos, só podemos expor o que somos. (...) Arte é isso. (...) Revele-se toda.” Esse trecho se encontra na carta de Graciliano Ramos (27.10.1892 – 20.03. 1953) dirigida a sua irmã Marili, a propósito de um conto que ela escrevera. Li recentemente a carta, mas esses conselhos – que o escritor expõe e realiza, em sangue e carne, em sua obra – ecoam na memória de leitora e em meu ofício de escritora. Desde os primeiros que li nos anos 1970 – São BernardoAngústiaVidas secas – e os que se seguiram, como: A terra dos meninos pelados, Histórias de AlexandreInfânciaMemórias do cárcereViventes das AlagoasAlexandre e outros heróis, admirei o estilo conciso, direto e encantatório de Graciliano. E cada vez que me ponho a escrever, sinto-me um pouco como “o menino mais velho”, personagem de Vidas Secas, que “nunca tinha ouvido falar em inferno”. Perguntou à mãe, Sinhá Vitória, ao pai, Fabiano, e à cachorra Baleia. O pai não deu atenção, a mãe lhe disse que era um lugar ruim e, quando quis saber se ela tinha visto, Sinhá Vitória “zangou-se e aplicou um cocorote”. Consolou-se com Baleia, contando-lhe histórias com seu vocabulário minguado, valendo-se de exclamações e gestos, e a cachorra respondendo com o rabo e a língua. Quando me pus a escrever este texto, esse episódio voltou à memória, simbolizando a obcecada busca de Graciliano pela palavra essencial, outro e complementar conselho seu em carta a tradutores argentinos: “A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso, a palavra foi feita para dizer”. Provavelmente não consegui encontrar palavras essenciais para dizer minha admiração por sua obra, mas ao menos busquei a concisão e não desomenageei o escritor, com enfeites e ouros falsos. Seus conselhos continuam vivos como aprendizado sobre o inferno que é o ofício de escritora na busca obsessiva para me revelar em sangue e carne. Arte é isso?

Maria Mortatti – 27.10.2023  


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PALMEIRA DOS INDÍOS E A CADELA BALEIA / JOÃO SCORTECCI

O ator Jofre Soares (José Jofre Soares, 1918 – 1996) nasceu em Palmeira dos Índios, agreste alagoano, distante 136 km da capital, Maceió. Terra do “Homem da Capa Preta” (Tenório Cavalcante, 1906 – 1987) e também do escritor Graciliano Ramos (1892 – 1953), autor de Vidas secas e Memórias do cárcere. O ator Jofre Soares começou sua carreira em 1961, aos 43 anos de idade. Atuou em mais de 100 filmes, entre eles: O bom burguês (1979), O grande mentecapto (1989), Terra em transe (1967), Memórias do cárcere (1984) e Bye bye Brasil (1979). Antes disso, foi oficial da Marinha por 25 anos. Já tinha se aposentado como marinheiro e se dedicava ao teatro amador e ao circo da cidade, no qual era um palhaço, quando o cineasta Nelson Pereira dos Santos (1928 – 2018) o conheceu e o convidou para fazer o filme Vidas secas, baseado na obra de Graciliano Ramos. A cadela vira-lata, que interpreta Baleia, foi encontrada pelo cineasta embaixo de uma barraca de frutas, numa feira de Palmeira dos Índios. Uma das cenas mais famosas do filme Vidas secas é o abatimento da cadela Baleia, em que é mostrado o animal sendo atingido por um tiro de espingarda, dado por seu dono, Fabiano. Quando o filme foi exibido no Festival de Cannes, na França, em 1964, o público e a crítica francesa ficaram impressionados com o realismo da cena e acreditaram que a cadela tivesse sido de fato sacrificada de verdade durante as filmagens, o que não foi verdade. Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo no ano de 2018, o diretor de fotografia do filme Luiz Carlos Barreto (1928 –    ), explicou como a cena da morte de Baleia foi realizada: “Pegamos uma linha branca de costura, amarramos a perna no rabo para ela fingir que tinha levado o tiro. Tinha a maquiagem, água de chocolate, não sei o quê. Ela tinha de fechar os olhos. Nós escolhemos uma locação, um carro de boi e o sol nascendo para ela olhar para o sol. O sol batia, e ela foi fechando os olhos por causa da luminosidade. O Nelson botou toda a equipe para fora, e só ficou eu, ele e o José Rosa – e a câmera. Ninguém falava nada. Na hora que ela começasse a fechar os olhos, o Nelson catucava o Zé Rosa e ele ligava a câmara. Foi o combinado. O sol nasceu, ela fechou os olhos e deu a sensação nítida de morte.” A cadela Baleia também é imortal. Vez por outra a vejo correndo no agreste, livre e solta, na imensidão da memória da vida. 

João Scortecci

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A “RODA DE LIVROS” DO CAPITÃO RAMELLI / JOÃO SCORTECCI

O engenheiro e capitão italiano Agostino Ramelli (1531 – 1610), nasceu na comuna de Ponte Tresa, hoje Suíça. Foi o inventor da “Roda de livros”, uma estante rotativa que possibilita ler, consultar e pesquisar vários livros num mesmo local. Foi inventada numa época em que livros grandes apresentavam problemas práticos para os leitores. Girava como se fossem movimentos de um moinho movido a água. Para garantir que os livros permanecessem em um ângulo consistente, Ramelli incorporou ao projeto engrenagens epicíclicas. À medida que a roda gira, cada prateleira gira na mesma proporção, permanecendo nivelada. Ramelli ficou conhecido por escrever e ilustrar o livro de projetos de engenharia As várias e engenhosas máquinas do Capitão Agostino Ramelli (Le diverse et artificiose machine del Capitano Agostino Ramelli), que, além de seu projeto da “Roda de livros”, contém 195 designs, mais de 100 dos quais são máquinas de levantamento de água, como bombas d'água, pontes, moinhos e um possível precursor do motor Wankel – motor rotativo de combustão interna, inventado pelo engenheiro alemão Felix Wankel (1902 – 1988), que utiliza rotores com formato semelhante ao de um triângulo, em vez dos pistões dos motores alternativos convencionais. Durante o Cerco de La Rochelle, ordenado por Luís XIII, rei da França, e comandado pelo Cardeal de Richelieu (Armand Jean du Plessis, 1585 – 1642), que acabou com a capitulação da cidade, em 28 de outubro de 1628, Ramelli construiu com sucesso uma mina sob um bastião – posto avançado para a defesa de um território – e conseguiu violar a fortificação, até então inviolável. Ramelli morreu em Paris, aos 79 anos de idade. Ficou na história do conhecimento como o mais criativo inventor de “engenhocas” movidas pelas forças da água e da natureza de Deus.

João Scortecci

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CAMILO CASTELO BRANCO E O AMOR: PERDIÇÃO E SALVAÇÃO / MARIA MORTATTI

Certos livros têm um misterioso poder de atração, antes, durante e depois da leitura. Há os inteiramente sedutores, que convidam à releitura. Há os que basta ler uma vez, pois cumpriram sua missão, deixando um ou outro aspecto gravado nas estantes da memória: o momento da leitura, uma frase, um verso, um enredo, um episódio, um protagonista, a capa, o título. 

De duas novelas do escritor português Camilo Castelo Branco (16.03.1825 – 1º.06.1890), ficaram-me principalmente os títulos: Amor de perdição e Amor de salvação. Gostei de lê-las durante o curso de Letras e depois, nos anos 1980, com meus alunos do ensino médio – na edição pela Série Bom Livro, da Ática. O foco eram, então, as caraterísticas do Ultrarromantismo português – amores idealizados e arrebatadores, sofrimento e melancolia – presentes em sua turbulenta vida, nessas novelas e na extensa obra do prolífico e popular escritor, de estilo por vezes também satírico e bem-humorado. Talvez o primeiro a viver dos rendimentos de suas publicações – mais de duas centenas, alguns sob pseudônimo, entre romances, novelas, crônicas, poemas, comédias, ensaios, traduções, além dos inéditos que deixou. Filho bastardo, órfão desde criança, leitor de clássicos portugueses e latinos, com personalidade irrequieta e apaixonada, marcada por amores tumultuados e proibidos, prisão por adultério, dificuldades financeiras e sífilis, causa da cegueira que, impedindo-o de ler e escrever e depois de esgotadas todas as tentativas de cura, levou-o a cometer suicídio, aos 65 anos de idade, com um tiro de revólver na têmpora direita, sentado em sua cadeira de balanço onde agonizou por algumas horas, assistido por Ana Plácido, sua antiga paixão e com quem finalmente se casara em 1885, ano em que também recebeu o título de 1º. Visconde de Correia Botelho.

Amor de perdição – Memórias de uma família (1862) é sua novela mais famosa e mais passionalmente romântica e inspirada em fatos de sua vida. Foi escrita em 15 dias, durante o período em que o autor esteve preso na Cadeia da Relação, na cidade do Porto, por crime de adultério com Ana Plácido, então casada e também presa pelo crime. Evocando "Romeu e Julieta", de Shakespeare, na novela de Camilo Castelo Branco, Simão Botelho e Teresa de Albuquerque, dois jovens de famílias rivais, são impedidos de se casarem. Simão mata Baltazar, o pretendente destinado a Teresa, que é enclausurada em um convento. Enquanto espera a decisão sobre sua pena, Simão é preso e conta apenas com a fiel companhia de Mariana, que se apaixona platonicamente por ele. Ao final, Simão e Teresa, após enfrentarem obstáculos e sofrimentos, morrem por e de amor. Em Amor de salvação (1864), é narrada a história de Afonso de Teive e Teodora Palmira, prometidos um ao outro por suas mães. Com a morte da mãe de Teodora, ela é enviada para um convento e, apesar da promessa dos jovens de se casarem assim que possível, não se conforma com regras para as mulheres da época e se casa com o primo Eleutério. Afonso sofre, dividido entre o amor da prima Mafalda, rica e bondosa, que por ele se apaixona, e o de Teodora, que, vivendo de “alma livre”, decide deixar o marido e ficar com Afonso. No final, porém, ao “amor de perdição” do desesperado Afonso por Teodora, tem-se o “amor de salvação” (financeira, sobretudo): ele se casa com Mafalda, e têm oito filhos. Nas palavras do autor: “Para o amor maldito, duzentas páginas; para o amor de salvação, as poucas restantes do livro. Volume que descrevesse um amor de bem-aventuranças terrenas seria uma fábula.”

Dos enredos que resumi, lembrava-me pouco. Tive de retomar e folhear os livros. E confesso que não me causaram impacto maior do que recordações de leituras distantes de clássicos de um grande escritor que fazem parte de minha formação literária e intelectual. O que ficou, mais marcadamente, foram os títulos, com sentidos que se renovam nas milhares de  páginas – mais de perdição que salvação – da história nada fabulosa de minha vida, ora escondidos, ora escancarados, nos contraditórios e insondáveis mistérios das faces do amor, esse sentimento de que – como da morte – ninguém escapa.

Maria Mortatti – 22.10.2023

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A SÉRIE VAGA-LUME, A LITERATURA "PARADIDÁTICA" E A FORMAÇÃO DE LEITORES NO BRASIL / MARIA MORTATTI

Lançada em 1973, sob a direção do editor e professor Jiro Takahashi (22.11.1947 –  ), que se tornou uma “lenda” no mercado editorial brasileiro, a Série Vaga-Lume da editora Ática deu início à publicação de livros de literatura para público jovem que se tornaram clássicos. E também consolidou o termo “paradidático” para designar esse produto editorial e o correspondente modo e espaço escolar de circulação de textos literários. Embora livros desse tipo fossem utilizados esparsamente nas escolas brasileiras desde o início do século XX – com destaque para Através do Brasil (1910), de Olavo Bilac e Manoel Bonfim –, a criação do termo “paradidático” é atribuída ao professor Anderson Fernandes Dias, diretor-presidente da Editora Ática, e ao editor e professor Jiro Takahashi, tendo se estendido a material de apoio de várias matérias do currículo escolar, além de Língua Portuguesa. Com reformulações no projeto original e desdobramentos na Série Vaga-Lume Júnior, desde os anos 1970 mais de 150 títulos foram lançados ou relançados, superando, segundo a editora, oito milhões de exemplares vendidos até 2021. 

Originada da impressão em mimeógrafo de apostilas didáticas para o Curso de Madureza Santa Inês, da cidade de São Paulo, a Ática iniciou, em 1970, a publicação de paradidáticos na área de língua portuguesa e literatura com a Série Bom Livro de clássicos de literatura brasileira e portuguesa. Com a democratização do ensino público decorrente das mudanças estabelecidas pela Lei n. 5.692, de 1971 – que, entre outras medidas, tornou obrigatório o ensino de oito anos – e com novos programas de incentivo à leitura e à formação de leitores, a Vaga-Lume foi destinada, como leitura extraclasse, para um público específico: estudantes de 5ª a 8ª. série do então 1º. grau, com idades entre 10 e 14 anos, pouco habituados à leitura de clássicos. Na contracapa dos livros, constavam seus objetivos de adequação aos interesses e gostos de estudantes dessa faixa etária: “Para despertar e criar o gosto pela leitura. Histórias emocionantes, cheias de ação, uma linguagem simples e direta. Todos os títulos com um Suplemento de Trabalho especial”. E com capas inovadoras para a época. Como conta Takahashi em entrevistas, os livros eram selecionados entre os que chegavam à editora e os indicados por professores, além de a editora convidar autores para escrever especialmente para a Série. Eram também “testados” por estudantes que davam sugestões sobre temas e distribuídos gratuitamente aos professores. Além das inovações, o baixo custo dos livros foi outro fator de sucesso da Série.

Os primeiros lançamentos da Vaga-Lume foram títulos de autores contemporâneos já publicados e consagrados em décadas anteriores, alguns agraciados com prêmios e indicações nacionais e internacionais. Entre esses, constam: dois de Maria José Dupré republicados em 1973 – A ilha perdida, de 1944, que inaugurou a Vaga-Lume, com mais de 5 milhões de exemplares vendidos até os dias atuais, e Éramos Seis, de 1943; seis títulos de Lúcia Machado de Almeida – O caso da borboleta Atíria, de 1951, republicado na Série em 1976, O escaravelho do diabo, publicado originalmente na revista O Cruzeiro e republicado em 1974, e As aventuras de Xisto, de 1957, republicado em 1973; dois títulos de Homero Homem – Cabra das Rocas, de 1960, republicado em 1973, com meio milhão de exemplares vendidos, e Menino de asas, de 1969, republicado em 1978, com mais de um milhão de exemplares vendidos até 1988 e que constou da lista de honra do Prêmio Hans Christian Andersen, em 1979; três títulos de Ofélia e Narbal Fontes – Cem noites tapuias, republicado em 1976, ano em que foi premiado com o Jabuti – CBL, O gigante de botas, de 1940, republicado em 1974, Coração de onça, de 1942, republicado em 1977. A partir dos anos 1980, autores brasileiros foram convidados a escrever especialmente para a Vaga-Lume. O primeiro e o “rei da Série” foi Marcos Rey, pseudônimo de Edmundo Donato, que já era consagrado como autor de obras para adultos, roteirista e tradutor. Estreou na literatura para jovens com a publicação na Vaga-Lume, em 1981, de O mistério do cinco estrelas, que, até fevereiro de 1995, vendeu quase um milhão de exemplares, seguido de 14 títulos seus publicados quase anualmente, entre os quais, O rapto do garoto de ouro, de 1982, Um cadáver ouve rádio, de 1983, Sozinha no mundo, de 1984, e Gincana da morte, de 1997, o último que publicou na Vaga-Lume. Também se destacou, entre outros, o escritor mineiro Luiz Puntel, com sete livros na Série, o primeiro deles Deus me livre!, de 1984.

Os livros da Vaga-Lume fizeram sucesso também entre meus alunos da educação básica nos anos 1980. Analisei três deles – A ilha perdidaAventuras de Xisto e O mistério do cinco estrelas – em minha dissertação de mestrado em educação, na Universidade Estadual de Campinas, orientanda por Joaquim Brasil Fontes Junior e publicada no livro Leitura, literatura e escola (Martins Fontes, 1989). Na enquete que realizei em 1984, com professores e alunos de escolas públicas da região de Campinas/SP, os preferidos eram também os best-sellers da Vaga-Lume. Contando com autores e títulos consagrados antes ou com sua participação na Série, com textos narrativos ficcionais adequados aos interesses e gostos dos jovens, com modo de circulação no espaço escolar, mas como leitura extraclasse, e com baixo custo, esses “paradidáticos” de literatura brasileira – como os de outras duas séries da editora: Bom Livro e Para Gostar de Ler – ampliaram o sentido do termo e desse tipo de produto editorial, tendo se tornado clássicos – os títulos e a Série – e um marco importante na história da literatura para jovens no Brasil e que, há 50 anos, vêm contribuindo para a formação de várias gerações de leitores.

Maria Mortatti – 21.10.2023

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RILKE E O JOVEM POETA KAPPUS / JOÃO SCORTECCI

Dez cartas – idas e vindas – e nenhuma poesia! O poeta checo Rilke (Rainer Maria Rilke, 1875 – 1926), em carta enviada ao jovem jornalista e cadete austríaco Franz Xaver Kappus (1883 – 1966), que ambicionava ser um poeta: “Ninguém de fora pode julgar se um autor deve continuar ou desistir de escrever: cada artista precisa avaliar, solitariamente, suas motivações e então descobrir se a arte é para ele tão importante quanto respirar. Investigue o motivo que o manda escrever; examine se entende suas raízes pelos recantos mais profundos de sua alma; confesse a si mesmo: morreria, se lhe fosse vedado escrever?” Na biografia de Kappus encontrei romances, roteiros e nenhuma poesia. Teria desistido? Viver Rilke e nunca ter “cometido” um poema? Impossível. Pergunta: O que teria acontecido com a décima primeira carta? Existiu de fato? De duas, uma: escrita e nunca enviada – ou nunca respondida? Ficou o mistério. Encontrei na Carta n. 7 um soneto de Rilke dedicado ao jovem Kappus: “Treme sem queixa por meu coração,/sem suspiro, uma dor muito sombria./ Só dos sonhos a nívea floração/é a festa de algum mais tranquilo dia.//Tanta vez a grande interrogação/se me depara! Encolho-me, e com fria/ timidez passo, como passaria/por bravo mar, sem aproximação.//Desce, então, sobre mim, turva amargura/como esses céus cinzentos de verão/onde uma estrela às vezes estremece.//Tateantes, minhas mãos vão à procura/do amor, buscam palavras da oração/que meu lábio deseja e não conhece” Busco, desde então, encontrar – mesmo que perdido, que seja – um poema do jovem Franz, que confesse a si mesmo: “morreria, se lhe fosse vedado escrever?”. Cadê você, Rilke? Não o tenho visto na estante de livros. Deve ter sido “surrupiado” ou ido embora, simplesmente. Quando? Não sei. Relendo a primeira carta, de 17 de fevereiro de 1903, algo nas entrelinhas, ainda por dizer: “Sua carta alcançou-me apenas há poucos dias. Quero agradecer-lhe a grande e amável confiança. Pouco mais posso fazer. Não posso entrar em considerações acerca da feição de seus versos, pois sou alheio a toda e qualquer intenção crítica. Não há nada menos apropriado para tocar numa obra de arte do que palavras de crítica, que sempre resultam em mal-entendidos mais ou menos felizes.” Outro dia, um poeta – iniciante, talvez – enviou-me pelo WhatsApp um pedido cruel: “João, lê meu livro e depois me diga, com sinceridade, o que você achou.” Cadê você, poeta Rilke? Ajude-me! A palavra “sinceridade” no âmago do verso alheio incomoda-me, sempre. O que devo, então, dizer-lhe? Que o seu poema é belíssimo, intenso e feroz? Tudo verdade! Cinquenta anos de poesia e eu não fui capaz de escrever algo igual. Escrevi-lhe, então, mensagem de resposta: “Cada poeta precisa avaliar, solitariamente, suas motivações e então descobrir se a arte é para ele tão importante quanto respirar. Não desista!” Fui covarde. Quase morri de inveja. Tudo culpa de Rilke e do furo da rosa! O belo não é senão o início do terrível, algo assim. 

João Scortecci


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MASSAO ONO, PEDRO MORAES, MARIA VIANNA, CUNHA BUENO E VINICIUS DE MORAES: POSTO QUE É CHAMA! / JOÃO SCORTECCI

Quando da morte do poeta, diplomata e compositor Vinicius de Moraes (Marcus Vinícius da Cruz de Mello Moraes, 1913 – 1980), em 9 de julho, uma quarta-feira, o editor e artista gráfico Massao Ohno (1936 – 2010), ligou-me e deu – de sola – a triste notícia: “Scortecci, o Vinicius morreu!”. “Não sabia”, respondi, surpreso. Massao Ono, aceleradíssimo, metralhou: “Falei agora com o Pedro, filho do Vinicius. Sabe, né? Ele autorizou usarmos aquela foto do pai de perfil, num cartaz! Sabe qual é, né?” “Não”, respondi. “Vinicius de perfil, sem a garrafa e o copo de uísque, claro!”, justificou. E continuou falando, sem parar: “Faço a arte final, “fulano de tal” cuida dos fotolitos e você imprime os cartazes. Combinado?” Topei. Massao Ohno, pilhado, continuou: “Estão organizando uma missa, algo assim, na igreja da Consolação, aqui em São Paulo, no sábado, dia 12, em sua homenagem. A ideia é distribuir o cartaz na cerimônia. Temos 3 dias!” Terminamos a conversa, com a promessa de nos falarmos novamente, no final do dia. Liguei, então, para a atriz e poeta cearense Maria Vianna, atriz em filmes como “Menino da porteira”, “A pequena órfã” e autora da Scortecci, com o livro de poemas “Vertical dos Descaminhos”. Contei-lhe o plano. Maria Vianna, prontamente, ligou para o Deputado Cunha Bueno, também autor da Scortecci e, na época, Secretário de Cultura do Estado de São Paulo. O pedido foi curto e irrecusável: “Secretário, precisamos imprimir 500 cartazes, formato meia folha, papel couchê, para um evento em homenagem ao Vinicius! Feito?” Na hora, Cunha Bueno autorizou a impressão. No dia da homenagem, na Igreja da Consolação, sábado, dia 12 de julho, às 11 horas da manhã, os cartazes foram distribuídos, gratuitamente. Surpresa foi encontrá-los – também  –  à venda, na entrada da igreja da Consolação. Até hoje não sei quem ganhou dinheiro, por fora. Na época, investigamos a bandidagem, sem sucesso. Culparam alguém da gráfica, algo assim. O cartaz e as provas, hoje, fazem parte do memorial da Scortecci. Na belíssima foto original tirada pelo fotógrafo Pedro de Moraes (1942 – 2022), filho de Vinicius, aparecem uma garrafa de uísque e um copo, além do perfil do poeta, eternizado por Massao Ohno, no cartaz. Vinicius: “Que não seja imortal, posto que é chama,/Mas que seja infinito enquanto dure.”

João Scortecci


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FALAR NA LÍNGUA DO SANTO E NA LÍNGUA DO “P” / JOÃO SCORTECCI

"Pajubá" é um dialeto ou criptoleto – linguagem de um grupo, usada para excluir ou confundir pessoas de fora do grupo – da linguagem popular, constituído da inserção em língua portuguesa de palavras e expressões provenientes de línguas africanas ocidentais, como nagô e iorubá. O pajubá (ou bajubá) é muito usado pelo chamado “povo do santo”, praticantes de religiões afro-brasileiras, como o candomblé. No Brasil, a partir de 1968, durante o período da ditadura militar, foi usado como código entre homossexuais, travestis e, posteriormente, adotado pela comunidade LGBT e simpatizantes. A palavra “pajubá” tem o significado de fofoca, novidade e notícia. Entre as palavras populares nesse criptoleto, estão: “mona” – gay efeminado; “gongar” – ato de zombar de alguém ou de alguma coisa; e “babado” – novidade. O “pajubá” reúne também características linguísticas próprias, como o vocabulário, o movimento performático do corpo, a tonalidade das palavras e o contexto cultural. Ganhou seu primeiro documento oficial em 1995, com a publicação do dicionário Diálogo de bonecas, organizado por Jovana Baby – batizado Osias Cardoso –, presidente da extinta Astral – Associação de Travestis e Liberados. Quando criança – isso nos anos 1960 – aprendi a cifra da “Língua do P”, que consiste em introduzir a consoante “P” antes de cada sílaba da palavra. Exemplo: “João gosta de comer feijão e farinha”, ficaria assim: “PEJoPEão PEgosPEta PEde PEcoPEmer PEfeiPEjão PEe PEfaPEriPEnha”. No dicionário Diálogo de bonecas até arrisquei um poema à la Drummond: “Ocó de equê, que amava Mona de equê, que amava Ocó, que amava Aracá, que não amava ocani.” Que desastre! 

João Scortecci

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POR QUE LER ITALO CALVINO? / MARIA MORTATTI

Para responder – de modo mais coerente – à pergunta-título deste texto, bastaria talvez apresentar cada um das centenas de trabalhos – romances, contos, ensaios, entrevistas, relatos de viagem, cartas, traduções, letras de canções, entre outros – que compõem a obra do escritor cubano-italiano Italo Calvino (15.10.1923 – 19.09.1985), considerando sua famosa afirmação sobre a irrelevância da biografia do autor, em carta de 1964, para Germana Pescio Bottino: “eu sou daqueles que creem, com Croce, que, de um autor, só as obras contam (quando contam, naturalmente). Por isso, dados biográficos não os dou – ou dou-os falsos – pelo menos, procuro sempre alterá-los de umas vezes para outras. Pergunte-me, porém, o que quer saber e dir-lho-ei. Mas nunca direi a verdade, disso pode estar segura." Ou, com certo atrevimento, poderia comentar cada um de seus romances – lançados pela Editora Einaudi, de que ele foi colaborador –, desde o primeiro, O caminho dos ninhos de aranha (1947), e ressaltando os mais conhecidos no Brasil – O visconde partido ao meio (1952), O barão nas árvores (1957), O cavaleiro inexistente (1959), As cidades invisíveis (1972), Se um viajante numa noite de inverno (1979), Palomar (1983), até os lançamentos de traduções brasileiras mais recentes. E neles destacaria as propriedades literárias – “Leveza”, “Rapidez”, “Exatidão”, “Visibilidade”, “Multiplicidade” e “Consistência” –, que Calvino apresenta em Seis propostas para o próximo milênio – lições americanas (1988, póstuma), reunião de palestras que iria proferir na Universidade de Harvard, mas faleceu em decorrência de derrame cerebral, antes de escrever a última – e de proferi-las. Ou, ainda, bastaria reproduzir aqui as 14 “propostas de definição” de clássico, apresentadas em seu livro Por que ler os clássicos, coletânea de ensaios, críticas, prefácios e resenhas “sobre ‘seus’ clássicos: os escritores, os poetas, os cientistas que mais contaram para ele em diversos períodos de sua vida”, como informa sua esposa, a tradutora argentina Esther Calvino (Chichita), em nota à edição italiana de 1991, publicada, portanto, após a morte do escritor, como ele mesmo desejava. 

Em todo caso, ainda ficaria uma pergunta: por que escrever sobre Italo Calvino, se eu e tantos outros já o fizemos, especialmente neste ano em que se comemora o centenário de seu nascimento? E se ele mesmo afirmou: “de um autor, só as obras contam”? Entre perguntas e respostas presunçosas ou tautológicas, o melhor a fazer nesse caso é dar a palavra a Calvino. Se clássicos são “aqueles livros dos quais, em geral, se ouve dizer: ‘estou relendo...’”, "que constituem uma riqueza para quem os tenha lido e amado; mas constituem uma riqueza não menor para quem se reserva a sorte de lê-los pela primeira vez nas melhores condições de apreciá-los”, “que exercem uma influência particular quando se impõem como inesquecíveis e também quando se ocultam nas dobras da memória, mimetizando-se como inconsciente coletivo ou individual”; “um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”; “aqueles livros que chegam até nós trazendo as marcas das leituras que precederam a nossa e atrás de si os traços que deixaram na cultura ou nas culturas que atravessaram”; “que, quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos de fato, mais se revelam novos, inesperados, inéditos”, " 'seu' clássico é aquele que não pode ser-lhe indiferente e que serve para definir a você próprio em relação e talvez em contraste com ele”; e se “os clássicos servem para entender quem somos e aonde chegamos”, então, considerando toda sua obra, inclusive Por que ler os clássicos, Calvino é, naturalmente, um clássico.

Então, por que ler (e reler) Calvino neste milênio... e nos próximos? Se nenhum desses argumentos for suficiente, resta a justificativa mais simples e certeira de Calvino: “A única razão que se pode apresentar é que ler os clássicos é melhor do que não ler os clássicos. E se alguém objetar que não vale a pena tanto esforço, citarei Cioran [...] ‘Enquanto era preparada a cicuta, Sócrates estava aprendendo uma ária com a flauta. ‘Para que lhe servirá?’, perguntaram-lhe. ‘Para aprender esta ária antes de morrer.’" E por que, afinal, escrever sobre Calvino? Bem, essa resposta é até mais simples: escrever este texto me proporcionou momentos adoráveis de intimidade com o autor, relendo seus clássicos, que nunca terminam de me dizer aquilo que tinham para dizer, desde o primeiro que li, Se numa noite de inverno um viajante (Editora Vega; Lisboa, 198?), aceitando o convite para tomar a posição mais cômoda e participar, como protagonista, do jogo narrativo: “Descontrai-te. Recolhe-te. Afasta de todos os outros pensamentos. (...) Di-lo já aos outros: ‘Não quero ser incomodado (...) Estou a começar a ler o novo romance de Italo Calvino’”.

Maria Mortatti – 15.10.2023


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A POESIA ENCARNADA DE MARINA TSVETÁIEVA / MARIA MORTATTI

Há poetas que, como faíscas que se desprendem de uma alma em brasa, iluminam cantos silenciados, encarnando-se em nós na mistura gasosa e incandescente da língua de fogo da poesia viva. Assim me pus a refletir, quando mergulhei em (re)leituras de e sobre a poeta, escritora – de ensaios literários e biográficos, peças de teatro, cartas, diários – e tradutora Marina Tsvetáieva (Moscou, 26.09.1892 – Yelabuga, 31.08.1941), uma das mais influentes poetas russas do século XX. Essa mulher insubmissa, que viveu da poesia e para a poesia, escreveu – diariamente – para se manter viva, realizando a autoprofecia da jovem que, em 1913, “quando nem sabia que era poeta”, escreveu: “para meus versos chegará seu tempo”. Assim foi durante sua breve vida: durante a Rússia czarista, as turbulentas condições políticas e econômicas da União Soviética, as duras tragédias pessoais e os célebres amores de inspiração poética mútua, como Sophia Parnok, Anna Akhmatova, Ossip Mandelstam, Rainer Maria Rilke, Boris Pasternak e Arseny Tarkovski. Em sua obra poética, tematizou, entre outros, a vida, a natureza e a morte, com influência de canções folclóricas e mitologia clássica. É reconhecida pelo despojamento formal, rimas inesperadas, sintaxe fragmentária, uso do travessão – uma de suas principais marcas estilísticas –, sensibilidade aguçada e passional, lirismo efusivo, incandescente e intenso, quase sempre “possessa”, com “gravidade elegante e ponderada”, nas palavras da professora e crítica literária Aurora Bernardini. Quando admirava um poeta e escrevia sobre ele, personificava seu estilo, como nos poemas a Maiakóvski e a outros poetas que influenciaram sua obra. 

Era filha de Ivan Vladimirovich, professor da Universidade de Moscou, filólogo, colecionador e crítico de arte e fundador do Museu de Belas Artes, e de Maria Mein, alemã de nascimento e pianista talentosa, que morreu de tuberculose quando Tsvetáieva tinha 14 anos de idade. Aprendeu música aos quatro anos de idade, leitura e escrita, aos cinco anos, e, além de russo, aprendeu alemão e francês. Em 1910, com 18 anos de idade, publicou, com recursos próprios, o primeiro livro de poemas, Album da tarde – incluindo redações escolares –, elogiado por grandes escritores e pelo crítico Maximilian Voloshin, que se tornou seu amigo e mentor. Participou de círculos literários e publicou seu primeiro trabalho de crítica literária dedicado à obra do poeta Valeri Bryusov. Em 1912, casou-se com Sergei Efron, estudante de filosofia na Universidade de Moscou, tiveram a primeira filha, Ariadna, e a poeta lançou seu segundo livro Lanterna mágica. Em 1914, já tendo nascido Irina, a segunda filha do casal, durante a Guerra Civil russa Efron se alistou no contrarrevolucionário “exército branco”, com que a poeta também simpatizava e que ele, mais tarde, abandonou para servir à polícia secreta soviética. Embora escrevesse sempre, Tsvetáieva nada mais publicou até 1922. Nesse período, manteve relações amorosas com os poetas Ossip Mandesltam e Sofia Parnok e, devido à fome da população moscovita, viu-se obrigada a deixar suas filhas em um orfanato estatal, onde Irina morreu de desnutrição, em 1919. Para se unir ao marido que estava em Praga, concluindo estudos em filosofia, em 1922 Marina emigrou com a família, passando por Berlim, onde encontrou o poeta e romancista russo Boris Pasternak, que estava comprando o segundo livro dela, editado por uma editora moscovita sem que ela soubesse. Como relata Aurora Bernardini, o poeta russo foi conquistado pela “potência lírica da forma, uma forma vivida intimamente, que nada tinha de frágil, mas um vigor conciso e condensado.” Teve vontade de conhecê-la e escreveu uma carta entusiasmada, iniciando-se entre eles a correspondência que durou mais de uma década e foi marcada por momentos de paixão, ao ponto de, em 1926, Pasternak ter pensado em deixar a Rússia e se unir à poeta. A ele Tsvetáieva dedicou um ciclo de poemas, e se encontraram apenas uma vez, pouco antes de ela morrer. 

Em 1925, a poeta se estabeleceu em Paris, onde, durante 14 anos, vivendo na pobreza e isolada da comunidade russa de expatriados, dedicou-se à família, à poesia, ao trabalho literário, colaborando com revistas e jornal, manteve correspondência com Pasternak e com Rilke e dedicou poemas a Akhmatova. Em 1939, retornou com o filho Georgi para a Rússia, onde já estavam o marido, que foi executado em 1939, por ter se  contraposto a Stalin e defendido Lenin, e sua filha Ariadna, que foi enviada a um campo de trabalhos forçados, onde permaneceu até ser “reabilitada” em 1955. Por ser parente de “inimigos do povo", Tvestáieva não conseguia emprego nem moradia permanente, vivendo da ajuda de algumas mulheres, e se ocupava com traduções e o organização de coletânea de poemas. Quando eclodiu a Segunda Guerra Mundial e se iniciou a invasão alemã na União Soviética, a poeta foi evacuada com o filho para o lugarejo de Labuga, na república Tártara, onde também não conseguiu emprego, nem de lavadora de pratos, como pedira, em carta de 26.08.1941, a um órgão da União dos Escritores Soviéticos. Sem mínimos recursos nem papel para escrever, acusada pelo filho das dificuldades financeiras em que viviam, sem notícias da filha, desesperada e em situação de fome extrema, em 31.08.1941 Marina Tsvetáieva cometeu suicídio – ou foi suicidada –, por enforcamento, com a corda que Bóris Pasternak lhe dera para fechar sua velha e surrada mala – “Forte, vai aguentar tudo, até se enforcar”, dissera ele –, quando se despediram, após o primeiro e último encontro, na partida de Tsvetáieva para Yelabuga. Ela deixou três cartas de adeus e um bilhete: “Não me enterrem viva: verifiquem bem!”.  O último poema que escreveu foi dedicado ao seu último amor, o poeta Arseny Tarkovski, que ela conheceu em 1939, quando retornou a Moscou. A relação amorosa durou pouco. Ao poema de Tarkovski, “A mesa, coloquei-a para seis”, referindo-se a ele mesmo, à esposa e familiares, Tsvetáieva respondeu, “possessa”, em março de 1941: “Refaço tudo o que me fez,/Tudo em um só verso poético:/– “Eu pus a mesa para seis”.../Tu esqueceste um – o sétimo.//Seis semblantes de tristeza./Como? Repete-me:/Como pudeste a esta mesa/Esquecer do sétimo – da sétima? (...)// Tu com os teus atrás da mesa –/Nem amigo, nem irmão, nem meu amado –/Que a puseste para seis, para mim mesma/ Não deixaste nem um só metro quadrado.” 

A extensa obra de Tsvetáieva, com dezenas de livros de poemas, peças de teatro e ensaios, além de centenas de cartas e páginas de diário, foi resgatada em grande parte pela filha Ariadna e “reabilitada” e divulgada a partir dos anos 1960, após o período de “degelo”, que se seguiu à morte de Joseph Stalin, em 1953. Como ela vaticinara, tinha chegado o tempo para sua poesia. Tornou-se conhecida e reconhecida como um dos ícones da “Era de Prata” da literatura russa moderna. No Brasil, seus poemas foram traduzidos pela primeira vez na antologia Poesia russa moderna, de Augusto de Campos, Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman (Perspectiva, 1968), com outros poetas de sua geração: Blok, Pasternak, Akhmátova, Mandelstam, Iessiênin. Posteriormente, a professora, ensaísta e tradutora brasileira Aurora Bernardini se tornou uma das principais referências no estudo e na tradução de sua obra. Por meio dessas traduções, dos ensaios do filósofo russo Tzvetan Todorov e da correspondência da poeta que ele reuniu, tive a oportunidade de conhecer a língua de fogo de Marina Tsvetáieva: “a vida e a morte são os elementos do meu mundo poético”; “Dou ouvidos a algo que soa dentro de mim de maneira constante, mas não regular, dando-me ora indicações, ora ordens. Quando indica – discuto; quando ordena – obedeço”. E me deixei encarnar por sua poesia viva de “fogo que não é feito para o banho-maria”, como se ela, compreendendo-me intensamente, ordenasse-me dizer, com sua voz misturada à minha: “não me compreendam mal: eu não vivo para escrever versos, eu escrevo versos para viver”.

Maria Mortatti – 14.10.2023
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OS "GROSSOS" DE CHARLES PAILLASSON / JOÃO SCORTECCI

O francês Charles Paillasson (1718 – 1789) foi mestre calígrafo da Comunidade de Mestres Escritores, um tipo de profissional que, no Antigo Regime – período da história francesa que corresponde ao reinado da Casa de Bourbon, desde a ascensão ao trono de Henrique IV, em 1589, até à Revolução Francesa, em 1791 – assumiu a função de escrever bem e ensinar essa arte. Nos séculos XVI e XVII, os mestres escritores se agruparam em corporações na França e Países Baixos Espanhóis (atuais Países Baixos, Bélgica, Luxemburgo e parte do norte da França). No livro A escrita Memória dos homens, do poeta e ensaísta francês Georges Jean (1920 – 2011), no capítulo “A eterna sabedoria da mão com a pena”, na página 114, é citado o seguinte trecho da obra A arte de escrever (L’art d’écrire), de Charles Paillasson, de 1763: “A primeira posição é a que se chama ‘de frente’, porque a pena é segurada quase frente a frente ao corpo, e de maneira a que ela produza sobre a linha perpendicular ou sobre a oblíqua grossos em gradação descendente. A segunda posição é ‘de lado’, pois a pena é segurada de maneira a que o bico fique na direção da linha horizontal para produzir os grossos na citada linha, assim como também acima e abaixo das partes curvas. A terceira posição é chamada ‘inversa’, porque a pena, da maneira que é segurada, produz grossos ascendentes.” Fiz o teste: funciona! Afora a aula, interessante e prática, sobre “A eterna sabedoria da mão com a pena”, pude observar no texto – repetidas vezes – o uso da palavra “grossos”. Pesquisei, reli o capítulo, sem sucesso. Nada sobre “grossos”, além de: plural de grosso, diâmetro considerável, que tem grande espessura, encorpado, corpulento, volumoso e grosseiro. Considerando – tudo é possível – um descuido de tradução, encontrei depois outra acepção para a palavra francesa "grosse", que, no campo da caligrafia e tipografia, significa letra bastarda, indicando mistura de letra formal e escrita cursiva comum, produzida com traço forte e grosso. Foi o que “entendi” quando li, pela primeira vez: traços grossos! Pena que a pena penou! Não resisti. Perdão!

João Scortecci


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ÉPICO DE GILGAMESH E A BIBLIOTECA DE NÍNIVE / JOÃO SCORTECCI

A Epopeia de Gilgamesh – coleção de placas em argila contendo textos – é um poema épico da Mesopotâmia escrito em cuneiforme, tipo de escrita criada pelos sumérios por volta de 3200 a.C., feita com objetos em formato de cunha. Em 1849, o arqueólogo britânico Austen Henry Layard (1817 – 1894) descobriu as ruínas da Biblioteca de Nínive, criada pelo rei assírio Assurbanípal, e lá encontrou também 12 tábuas de argila, cada qual contendo cerca de 300 versos da famosa “Epopeia de Gilgamesh”, escrita pelos sumérios em torno de 2000 a.C.., contendo a narrativa dos eventos de Gilgamesh, quinto rei de Uruk, cidade da Suméria – posterior Babilônia – situada a leste do rio Eufrates, a sul-sudeste de Bagdá. No poema, Gilgamesh é apresentado como um rei despótico, arrogante, que oprimia o seu povo e conta sua epopeia em busca – sem sucesso – da humildade, caminho espiritual para a imortalidade. Os deuses, então, criaram Enkidu – figura lendária na antiga mitologia mesopotâmica, camarada de guerra – e o enviaram ao encontro do rei com a missão de torná-lo mais humilde. A Biblioteca de Nínive é considerada a primeira biblioteca da história. A grandeza de Nínive teve duração curta. Por volta do ano 633 a.C., a cidade foi atacada pelos medos e depois pelos caldeus e sussianos. Nínive caiu em 612 a.C. e foi arrasada até o chão. Um grande incêndio devastou a biblioteca e soterrou registros das sociedades que povoaram a Mesopotâmia e regiões vizinhas e, com eles, o passado do Oriente Próximo. Após a Guerra do Golfo, todas as escavações foram suspensas, e as equipes de pesquisa foram obrigadas a deixar o Iraque. Nínive – maior sítio arqueológico de todo o Oriente, com 750 hectares – está na lista dos 100 sítios históricos mundiais que estão mais ameaçados, segundo o Observatório dos Monumentos Mundiais. O Estado Islâmico do Iraque e do Levante publicou, no dia 26 de fevereiro de 2015, um vídeo, mostrando a destruição de várias estátuas antigas e esculturas – algumas do século VII a.C. – do Museu de Nínive.

João Scortecci

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O EDITOR HU ZHENGYAN / JOÃO SCORTECCI

O desenhista e editor chinês Hu Zhengyan (1584 – 1674) trabalhou com caligrafia, textos acadêmicos e produção de sinetes – selos, placas e anéis de metal usados como assinatura do proprietário para selar e autenticar documentos e cartas. Na idade adulta, viveu na cidade de Nanquim, capital da província de Jiangsu, na República Popular da China, durante a transição da dinastia Ming para a dinastia Qing. Hu Zhengyan possuía e dirigia a editora acadêmica Estúdio dos Dez Bambus, onde praticava impressão policromática e em relevo. Foi um notável entalhador de sinetes, tendo produzido selos pessoais para vários dignitários. Seu estilo estava enraizado na tradição clássica da dinastia Han e seguia a escola de escultura Huizhou, fundada por seu contemporâneo He Zhen. Apesar de sua reputação como artista e entalhador de sinetes, a principal ocupação de Hu Zhengyan era a edição. O Estúdio dos Dez Bambus – em que empregava dez artesãos, incluindo seus dois irmãos Zhengxin e Zhengxing e seus filhos Qipu e Qiyi – publicou catálogos de selos, textos acadêmicos e médicos, livros sobre caligrafia e poesia e papéis de escrita decorativa. Ao contrário de outras editoras da área, não publicava obras de ficção, como peças de teatro ou romances. Entre 1627 e 1644, o Estúdio produziu mais de 20 livros destinados a um público rico e letrado. Após a queda da Dinastia Ming, Hu Zhengyan alterou o nome da editora para Salão Enraizado no Passado, embora a marca “Dez Bambus” continuasse a ser usada. Hu Zhengyan e seus irmãos Zhengxin e Zhengxing trabalharam juntos na publicação da cartilha para estudantes intitulada Reflexão sobre poesia, de 1635, sobre a obra poética de seu contemporâneo Ye Tingxiu. A editora publicou, entre outros, Princípios úteis para o funcionamento sutil de poemas Tang (Lei xuan Tang shi zhu dao weiji), uma compilação de vários trabalhos sobre poesia, que incluía colofão de Hu Zhengyan. Ele é também autor de O manual do Estúdio dos Dez Bambus, famosa antologia publicada em 1633, com cerca de 320 gravuras de 30 artistas diferentes, inclusive ele. A obra é composta por oito seções, abrangendo caligrafia, bambu, flores, rochas, pássaros, animais, orquídeas, ameixas e outras frutas e foi impressa, ininterruptamente, durante 200 anos. O manual do Estúdio dos Dez Bambus foi encadernado no estilo "borboleta", no qual as ilustrações de fólio inteiro são dobradas de modo que cada uma ocupe uma página dupla. Em agosto de 2015, a Biblioteca da Universidade de Cambridge lançou uma digitalização completa do manual, incluindo todos os escritos e ilustrações. Hu Zhengyan também produziu a obra Papel de carta do Estúdio dos Dez Bambus (1644), uma coleção de amostras de papel, em que foi utilizada a técnica de estampagem donghua, para destacar as ilustrações em relevo. Mestre Hu morreu em Pequim, no ano de 1674, aos 90 anos de idade. 

João Scortecci

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O “LIVRO DE KELLS” E SÃO COLUMBA: POMBA DA IGREJA / JOÃO SCORTECCI

O Livro de Kells, também conhecido como Grande Evangeliário de São Columba, é um manuscrito ilustrado, com motivos ornamentais, com 680 páginas, feito por monges celtas por volta de 800/806 d.C, no estilo conhecido por “arte insular” ou “arte hiberno-saxónica” produzida após o Império Romano nas Ilhas Britânicas. O termo é usado também para designar a escrita produzida naquela época. Em razão da sua grande beleza e da excelente técnica do seu acabamento, esse manuscrito é considerado por muitos especialistas como um dos mais importantes vestígios da arte religiosa medieval. O monge São Columba (521 – 597), nascido em Donegal, Irlanda, também conhecido como Columba de Iona, foi grande figura missionária da Escócia. Reintroduziu o cristianismo entre os Pictos – grupo de povos de língua celta – que viveram naquele país. O Livro de Kells, escrito em latim, contém os quatro Evangelhos do Novo Testamento, com notas preliminares e explicativas e com numerosas ilustrações e iluminuras coloridas. A Abadia de Iona está localizada na Ilha de Iona, próxima da Ilha de Mull, na costa ocidental da Escócia. É um dos mais antigos e mais importantes centros religiosos da Europa Ocidental. Foi o ponto focal da expansão do cristianismo por toda a Escócia e marcou a fundação de uma comunidade monástica por São Columba. No ano 563, partindo da Irlanda com 12 companheiros, esse monge chegou a Iona e fundou ali um mosteiro que cresceu até se tornar um influente centro para a expansão do cristianismo. Acredita-se que o Livro de Kells tenha sido produzido pelos monges em Iona nos anos finais do século VIII e que se destinava principalmente à exibição e não à leitura. As imagens são elaboradas e detalhadas, enquanto o texto é descuidado, com palavras em falta e passagens repetidas. O manuscrito se encontra exposto permanentemente na biblioteca do Trinity College de Dublin, República da Irlanda.

João Scortecci

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FERNANDO SABINO: "GOSTO DE QUEM GOSTA DE MIM" / JOÃO SCORTECCI

Conheci o escritor, jornalista e editor mineiro Fernando Sabino (1923 – 2004) nos anos 1990, em um evento literário na cidade de São Paulo, durante o lançamento do polêmico livro “Zélia, uma paixão”, relato do período em que Zélia Cardoso de Mello esteve à frente do Ministério da Economia, no governo do presidente Fernando Collor de Mello, e sua "relação" com o ministro Bernardo Cabral.  Naquela oportunidade, Sabino e eu trocamos gentilezas, mas não pude lhe contar da importância do seu livro "O Encontro Marcado" (1956) na minha vida de escritor e editor. O livro foi um dos primeiros que li quando ainda morava em Fortaleza/CE. Na época, um sonho: conhecer Fernando Sabino. Nosso "encontro" aconteceu dois ou três anos depois – 1992 ou 1993 – na sede da Rede Bandeirantes de Televisão, no programa de variedades da jornalista e apresentadora Sílvia Poppovic. Além de Sabino, estavam presentes a atriz Lucélia Santos e um músico, cujo nome, infelizmente, não recordo. O papo foi sobre cultura e o que cada um andava fazendo de bom. Na rodada final do programa, Poppovic abriu espaço para perguntas e respostas entre os convidados. Lucélia Santos me perguntou sobre o assunto do meu livro: "A morte e o corpo". O músico perguntou para Lucélia Santos algo sobre o filme "Escrava Isaura" (1977). E eu – apavorado – perguntei ao Fernando Sabino sobre a arte de escrever. "Sabino, o que é uma boa história?" A pergunta não o surpreendeu, e a resposta veio com um delicioso sorriso. "Uma boa história é aquela que pode ser contada!" Silêncio. Poppovic assumiu o programa e o encerrou. A resposta de Sabino até hoje faz parte do meu "entendimento" sobre a arte de escrever. O melhor veio depois, já no pátio da emissora, no bairro do Morumbi, aguardando a chegada de uma Van, que o levaria direto ao aeroporto de Congonhas, com destino ao Rio de Janeiro. Pude, então, abrir o coração e lhe contar sobre a importância do seu livro "O encontro marcado" na minha vida. Sabino, emocionado – juro que vi lágrimas nos seus olhos –, disse-me: “Scortecci, gosto de quem gosta de mim”. Encontramo-nos ainda mais algumas vezes, em bienais do livro do Rio, Minas e São Paulo. Sabino morreu em 2004, aos 80 anos de idade.

João Scortecci

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ALMANAQUE LUNÁRIO PERPÉTUO / JOÃO SCORTECCI

Coleciono de tudo! Um acumulador de memórias impressas. Já colecionei almanaques e busquei, durante algum tempo, sem sucesso, ter na coleção um exemplar original de "Lunário Perpétuo", o mais famoso e cobiçado almanaque já publicado no mundo. Não consegui, ainda. Ilustrado com xilogravuras, composto pelo matemático, astrônomo, naturalista e compilador espanhol, Jerônimo Cortés (1560 – 1610), "Lunário Perpétuo" foi publicado pela primeira vez no ano de 1594, em Valência, cidade portuária da costa sudeste da Espanha, e reeditado, inúmeras vezes, ao longo de séculos, com pequenas variações em seu título e conteúdo, com correção de pequenos erros e com atualizações. Foi publicado em língua portuguesa pela primeira vez em 1703, com tradução de Antônio da Silva de Brito, e se tornou popular no Brasil, principalmente na região Nordeste. Segundo o historiador e folclorista Luís da Câmara Cascudo (1898 – 1986), que mantinha um exemplar de "Lunário Perpétuo" na sua mesa de cabeceira, foi o livro mais lido no Nordeste brasileiro durante dois séculos. O almanaque oferecia conselhos e orientações sobre os mais variados aspectos da vida, incluindo tabelas das fases da Lua, dos eclipses do Sol e das festas móveis, previsões do tempo, horóscopos, elementos de Direito, navegação, teologia, saúde, agricultura, maneiras de interpretar o comportamento dos animais, biografias de santos e papas e outros dados de interesse geral. O alemão Jorge Seckler (Georg Johann Seckler, 1840 – 1909), com 15 anos de idade, no ano de 1855, transferiu-se para o Brasil, tornando-se aprendiz de gráfico na Typographia Allemã, de Henrique Schroeder. Posteriormente, tornou-se proprietário da Sociedade Artística Beneficente – na Rua São Bento, n. 58 – uma das mais importantes oficinas tipográficas paulistanas, responsável pela mais longeva série de almanaques comerciais do estado de São Paulo. Em 1862, adquiriu uma oficina de encadernação – que pertencia a Hermann Knoesel – e, em 1865, iniciou o serviço de impressão com tipos móveis. Entre 1872 e 1878, fundou a Typographia Livro Verde – na Rua Direita, n. 14/15 – estabelecimento que, além de serviços de impressão, oferecia livros, material de escritório, encadernação e pautação de papel para escrita. É desse período a “febre” dos almanaques, não só no Brasil, mas no mundo todo. Em 1891, Jorge Seckler, adoentado, afastou-se do serviço de gráfico, e a empresa mudou de proprietário, passando a se chamar Companhia Industrial de S. Paulo. Nos dois anos seguintes, o "Almanach de Seckler", como era conhecido, publicado pela Companhia Industrial de São Paulo, levou impressa na sua capa a marca: “sucessora de Jorge Seckler & Companhia”. Jorge Seckler faleceu em 23 de fevereiro de 1909, aos 69 anos de idade. "Lunário Perpétuo" continua sendo, até hoje, para colecionadores e admiradores de almanaques, objeto de desejo e obra obrigatória na coleção de um memorialista.  

João Scortecci

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PLÍNIO, O VELHO, E O VULCÃO VESÚVIO / JOÃO SCORTECCI

O escritor, historiador, naturalista e oficial romano Plínio, o Velho, (Caio Plínio Segundo, 23 d.C. – 79 d. C.) nasceu em Como, na Lombardia, norte da Itália. Morreu jovem, com 56 anos de idade, ao tentar observar de perto a erupção do vulcão Vesúvio, localizado a leste da cidade de Nápoles e a 26 quilômetros da cidade de Pompeia. Caio Plínio é autor do tratado História Natural, uma imensa compilação composta de 37 volumes, que contém passagens originais sobre o destino do homem na natureza. É considerado o maior erudito da história imperial romana. A obra se tornou um modelo para enciclopédias posteriores e obras acadêmicas, como resultado de sua abrangência de assuntos, suas referências aos autores originais e seu índice. Caio Plínio, quando da erupção do Vesúvio, ocupava o posto de Almirante da frota de Miseno, no Porto de Campânia, próximo a Nápoles. Ordenou preparar um pequeno barco, convocou uma tripulação de nove marujos e se pôs a caminho da cidade de Pompeia. Durante o percurso, enfrentou altas temperaturas e uma densa nuvem de fumaça que fez com que o seu barco se desviasse do destino. Foi obrigado a aportar em Castellammare di Stabia, situada no golfo de Nápoles, no sul da Itália. Na manhã do dia seguinte, uma densa nuvem cobriu a região, matando todos por intoxicação causada pelos gases expelidos pelo Vesúvio. Caio Plínio, na época, foi responsabilizado pela morte de nove marinheiros e pela perda de uma embarcação romana. O Vesúvio é o único vulcão na Europa continental a ter entrado em erupção nos últimos 100 anos, sendo considerado atualmente um dos mais perigosos do mundo, devido a sua tendência de erupções explosivas. O Vesúvio foi responsável pela destruição das cidades romanas de Pompeia e Herculano, redescobertas, acidentalmente, no final do século XVIII.

João Scortecci


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HENRIQUETA & MÁRIO: FACES ÍNTIMAS DE UMA AMIZADE / MARIA MORTATTI

“Procuro daqui/procuro de lá” e vou reencontrando a poetisa, tradutora, ensaísta e professora Henriqueta Lisboa (Lambari/MG, 15.07.1901 – Belo Horizonte/MG, 09.10.1985). Normalista pelo Colégio Sion de Campanha/MG, acompanhou a família, quando o pai exerceu mandatos legislativos no Rio de Janeiro/DF e, em 1935, na capital mineira, onde Henriqueta exerceu atividades profissionais, como inspetora federal de educação superior, professora de Literatura na Escola de Biblioteconomia de Minas Gerias e de Literatura Hispano-Americana na atual Universidade Católica de Belo Horizonte. Estreou na poesia em 1925, com o livro Fogo fátuo e, nas décadas seguintes, publicou duas dezenas de livros de poesia, além de ensaios literários, de textos em jornais e revistas cariocas e mineiros, de traduções de poemas de Dante Alighieri, Gabriela Mistral, entre outros, e de organização de antologias de poemas e literatura oral para a infância e a juventude. Teve poemas traduzidos em várias línguas, como o francês, inglês, italiano, espanhol, alemão, foi a primeira mulher eleita para a Academia Mineira de Letras, em 1963, foi membro do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais e da Comissão Regional do Folclore e manteve diálogo com escritores e intelectuais, como, entre muitos outros, Cecilia Meireles, Gabriela Mistral (que traduziu O menino poeta para o espanhol), Carlos Drummond de Andrade, Jorge de Lima, Murilo Mendes e Mário de Andrade. Recebeu vários títulos e prêmios, entre os quais: Prêmio de Poesia Olavo Bilac, da Academia Brasileira de Letras, em 1931, pelo livro Enternecimento; Prêmio da Câmara Brasileira do Livro, em 1952, pelo livro infantil Madrinha lua; e, em 1984, o Prêmio Machado de Assis, da Academia Brasileira de Letras, pelo conjunto da obra. Sobre sua vida e sua obra há diversos estudos em livros, teses, revistas, e sua obra completa, com mais de 2 mil páginas, está reunida em livro organizado por Wander de Melo Miranda e Reinaldo Marques (Peirópolis, 2020).

Procurando daqui e de lá, vou encontrando rastros da amizade entre Henriqueta Lisboa e o poeta, contista, cronista, romancista, musicólogo, historiador de arte, crítico e fotógrafo Mário de Andrade (09.10.1893 – 25.02.1945) figura central do Modernismo brasileiro. A "amizade amorosa" – nas palavras dela – ou "comunhão feliz" – nas dele – nasceu do encontro em Belo Horizonte em 1939 e se estendeu, entre 1940 e 1945, na intensa correspondência reunida em livro organizado por Eneida Maria Souza (Edusp; Peirópolis, 2010). As 42 cartas, três bilhetes e dois telegramas recebidos por Henriqueta, que ela guardou em uma caixinha de madeira, estão preservadas no Acervo de Escritores Mineiros na Universidade de Minas Gerais. As 40 cartas guardadas por Mário se encontram no Instituto de Estudos Brasileiros na Universidade de São Paulo. A correspondência revela trocas afetivas, com confidências e reflexões sobre assuntos pessoais e poéticos, dando a conhecer faces íntimas vividas intensamente por ambos, que, com personalidades e projetos literários diferentes entre si, deixaram lições sobre essa amizade e sobre a literatura brasileira da primeira metade do século XX. 

Nas cartas, Mário analisa e comenta poemas de Henriqueta, com sinceridade por vezes severa, indicando alterações no estilo simbolista dos primeiros livros dela, outras vezes elogiando seu amadurecimento poético: “você sabe que é sem a menor condescendência que gosto imenso da sua poesia”. No período da correspondência entre ambos, a poesia de Henriqueta foi adquirindo características do Modernismo, como nos livros: Prisioneira da noite (1941), O menino poeta (1943) e A face lívida (1945). Em carta de 24 de março de 1941, Henriqueta revela a Mário a “vontade de fazer um livro de poemas sobre motivos folclóricos para crianças. Examino, por enquanto, as possibilidades, estudo você e outros mestres. Já tenho setenta motivos viáveis, a escolher. Mas não sei. Diga-me o que acha. Nesse período que precede o trabalho estritamente pessoal fico numa preguiça, num pessimismo, num absurdo desânimo. Você sabe o que significa de iluminação para mim uma palavra sua”. Vários poemas do livro foram submetidos à apreciação de Mário, que também indicou a alteração do título inicial Caixinha de música para O menino poeta. Quando o livro foi publicado, ele comentou: “são simplesmente um encanto pros ouvidos, pros olhos, pro corpo todo. O menino poeta, isso achei maravilha integral”. “Esse lirismo que a excetua, uma carícia simples, dor recôndita em sorriso leve e a frase contida – coisas raras na poesia nacional”. E ironizou o silêncio da crítica: “Mas Henriqueta, eu tenho a certeza que esse silêncio indica muito, estão perplexos, e com mal estar. Na verdade carece ter uma alma muito, não digo pura, mas doida, solta, indefesa pra gostar, não só de você que é doida, solta e indefesa, mas especialmente do Menino Poeta. Eu mesmo que adoro o livro, fico 'criticamente' atrapalhado pra falar, não consigo exatamente saber, nessa revoada tão tênue e sutil de lirismo, qual foi sua intenção. (...) Na verdade você não pertence às linhas gerais da crítica de poesia nossa (...) você é um atalho, uma clareira, coisa assim, no caminho. Pra uns fica como pedra no sapato, mas a maioria passa sem pôr reparo. Você clareira minha, terá decerto que se contentar toda a vida, com os que sabem aproveitar a graça divina das clareiras pra descansar e sabem que é nos atalhos que os passarinhos cantam mais." 

A aparentemente improvável amizade entre ambos foi objeto também de especulações sobre ter sido Mário o amor platônico de Henriqueta, já que ambos viveram sós até o fim da vida. Ele, como se sabe, optou pela intransitividade do amor. Ela, tímida e católica, acreditava no matrimônio como compromisso para a vida toda e não se casou “por falta de compromisso mútuo à hora certa e na medida exata” – como afirmou em entrevista de 1969 –, tendo optado por dedicar sua vida à poesia. Muitos poemas de Henriqueta em seu livro Enternecimento, de 1929, foram dedicados a um professor de Educação Física argentino, Tripudio Lomanto, que ela conheceu no Rio de Janeiro e cujo nome permaneceu em segredo, exceto entre alguns familiares mais próximos. Apesar da promessa, sobretudo em cartas apaixonadas, ele foi se "esquivando", e o casamento não se realizou. Esse foi o “desengano do coração” que ela comenta, com certas ironia e mágoa, em resposta à carta em que Mário diz que ela simboliza a amiga a quem ele, antes de conhecê-la, escreveu “Poemas da amiga”, e complementa: “hoje eu sinto que eles são exclusivamente seus e eles foram escritos para você (...) Eu sei que nesta comunhão feliz em que nós dois vivemos, nós nos preferiríamos um pouco mais de mãos, não dadas, mas atadas, você se deixando brutalizar pela vida como eu, ou eu me elevando com mais frequência para as ‘Adivinhas’. Nada impede, Henriqueta, nada impedirá mais aquela atração divinatória, aquela escolha muito pouco livre com que nós nos encontramos. E você me perdoou e eu adorei você – e hoje nós nos amamos com a maior densidade e a maior gratuidade do favor de amigos.” 

A face lívida, livro escrito no período da Segunda Guerra Mundial, Henriqueta o dedicou à memória de Mário. Após o falecimento do amigo, a poetisa continuou sua obra, o elo daquela amizade. Procurando daqui, procurando de lá, dei-me conta da coincidência de datas em que ambos se atam também nas efemérides literárias: Henriqueta faleceu no dia 9 de outubro de 1985, com 84 anos de idade, no dia em que Mário de Andrade estaria completando 92 anos de idade. Encontrei, ainda, a crônica que escrevi em 2021[1], quando dei de presente O menino poeta para um menino então com nove meses de vida, que se encantou com aquela “maravilha integral”. E, nesta data, em que se completam 38 anos da morte de Henriqueta e 130 anos do nascimento de Mário, reencontro, atados na intimidade da estante, "O menino poeta" – "para me ensinar/as bonitas cousas/do céu e do mar" – e “A face lívida”: "Não a face dos mortos./Nem a face/dos que coram/aos açoites/da vida./Porém, a face/lívida/dos que resistem/pelo espanto.//(...) Não a face da estátua/fria de lua e zéfiro./Mas a face do círio/que se consome/lívida/no ardor." 

Maria Mortatti – 09.10.2023

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[1] "Ao menino poeta" é o título da crônica publicada em O primeiro livro de Arthur, de Maria Mortatti (Scortecci Editora, 2022).

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